outubro 17, 2012

A Janela de São Mateus por Caravaggio

Já não é a primeira vez que utilizo o quadro A Invocação de São Mateus (The Calling of St. Matthew) de Caravaggio para demonstrar o uso da luz na pintura, e em certa medida acabo por o utilizar para falar da composição e do modo como conta uma história baseada num outro meio (neste caso o livro da Bíblia). Esta semana numa aula acabei sendo um pouco mais provocador dizendo que a janela que aparece nesta composição, e de forma tão proeminente, não era relevante para a composição. Claro que dizer coisas destas tem um enorme potencial para despoletar discordâncias, e foi isso que aconteceu.

A Invocação de São Mateus (1599) Caravaggio
"Partindo dali, Jesus viu um homem chamado Mateus, sentado no posto de cobrança, e disse-lhe: “Segue-me!”. Ele levantou-se e seguiu-o"[São Mateus 9, 9]
Uma aluna defendeu que a presença da janela na composição se deveria à composição do triângulo renascentista, a origem matemática do belo, entretanto também ligada à ideia da Santíssima Trindade. Assim a janela seria o topo do triângulo, o São Mateus e amigos a ponta inferior esquerda, e Jesus a ponta inferior direita. Tenho de confessar que senti alguma perplexidade, porque apesar de nunca ter realizado esta leitura, ela fazia algum sentido, mas não me convenceu totalmente. Mas como a imagem não me saía da cabeça, e o triângulo me parecia demasiado forçado em termos interpretativos, voltei a análise do quadro e da janela.

Re-encenação para criação fotográfica de Diver & Aguilar (2011). Sem fundo, nem janela.

Fui rever alguns livros que tinha cá por casa sobre o Barroco e do Gombrich mas nada, procurei algumas fontes na net mas também não fiquei muito satisfeito. A leitura da triangulação que tínhamos discutido na aula não aparecia referenciada em lado algum. A composição deste quadro é sugerida apenas como criada a partir de dois blocos, um vertical (Jesus em pé) e um horizontal (São Mateus sentado). Encontrei uma descrição única que lia um triângulo na mesa, nada mais. Foi então que encontrei uma outra abordagem à leitura da janela, feita por historiadores de arte mais ligados à religião. Para estes a janela é um elemento religioso da obra e não matemático. Eles veem na Janela o símbolo da Cruz.
“There is also a symbol foreshadowing the death of Christ, the cross.  If at first you don’t see it then look again at the window panes, there is the cross in the center.  This would have been more apparent to the contemporary viewer; such large window panes are everywhere today but would have been rare at the time.” [link
Mas se o triângulo me parecia forçado, a cruz parece ainda mais interpretativo, uma clara projeção inferencial de quem está a ler e quer ler determinados sentidos. E foi aí que me lembrei da série da BBC, The Power of Art (2006) [1] do Simon Schama que tem um episódio inteiramente dedicado a Caravaggio. Fui rever o trecho da análise do quadro que podem ver aqui abaixo, a partir dos 35s.

Trecho de análise de "The Calling of St Matthew" por Simon Schama no documentário Power of Art (2006).
“So instead of setting the calling in some fantasy Holy Land, Caravaggio beams Jesus down to a dim room in Rome. It's a dive, really. Torn paper shades on the windows and characters from the cardsharps and other low lives gather to witness the big moment.” [1]
Para Simon Schama a janela é simplesmente uma fonte de luz de preenchimento, para criação de luz difusa. Ou seja a janela estaria ali "coberta de papel" para criar uma entrada de luz mais suave no local. Isto é também referido por outros autores, em várias enciclopédias de arte.
“The light has been no less carefully manipulated: the visible window covered with oilskin, very likely to provide diffused light in the painter's studio”
Ou seja aquela seria uma janela real no estúdio no qual Caravaggio terá encenado a cena e pintado o que estava a ver. E depois de ler o artigo "Inferring Caravaggio's studio lighting and praxis in The calling of St. Matthew by computer graphics modeling" [3] restam-me poucas dúvidas sobre o facto de a cena ter sido mesmo encenada num lugar real, nomeadamente para se conseguir ter uma leitura mais fidedigna do desenho da luz.

"Inferring Caravaggio's studio lighting and praxis in The calling of St. Matthew by computer graphics modeling" [3]

Assim o que Schama nos diz é que esta janela é parte de um enquadramento que sugere realidade a quem vê. Aquela janela não é parte de uma composição, ela é antes parte integrante daquele lugar, sala ou estúdio.
"What Caravaggio wanted was for people to come into the darkness, in this space, and suddenly find themselves in the presence, not of a painting at all, but a real event. Seeing is believing." [1]
Igreja de San Luigi dei Francesi onde se encontram, à esquerda A Invocação de São Mateus, ao centro São Mateus, e à direita Martírio de São Mateus (1599-1600).

Mas John Berger nem sequer se questiona sobre isso mesmo. Para ele não há dúvida que aquela janela pretende apenas conferir realismo ao local em que a cena, o momento histórico, acontece,
"And behind the drama of this moment of decision is a window, giving onto the outside world. In painting, up to then, windows were treated either as sources of light, or as frames framing nature or an exemplary event outside. Not so this window. No light enters. The window is opaque. We see nothing. Mercifully we see nothing because what is outside is threatening. It is a window through which only the worst news can come; distance and solitude." [2]
Recorte do elemento janela da A Invocação de São Mateus (1599) Caravaggio

O que fica é que Caravaggio era um inovador e quebrou com muitos tabus. As suas cenas não eram iluminadas totalmente, deixavam muito na escuridão que obrigava o espectador indagar-se. Por outro lado os seus personagens não eram baseados em aristocratas, religiosos ou santos, mas eram antes feitos de corpos comuns, com músculos, pêlos e sujidade. Caravaggio era um contador de histórias e um criador de Experiências. Não lhe interessava os meros símbolos, o que ele procurava era a realidade bruta, para através dela chegar bem dentro das cabeças das pessoas. Nesse sentido o seu maior legado continua a ser ainda hoje a introdução da luz fortemente contrastada, o chamado chiaroescuro na pintura, pois foi através dele que este conseguiu gerir o drama das experiências criadas em cada tela.


[1] BBC, Caravaggio, in Simon Schama's The Power of Art (2006), min. 15:20
[2] John Berger,  "And Our Faces, My Heart, Brief as Photos", Pantheon Books, 1984, p. 81-82.
[3] Stork, D., Nagy, G., (2010), "Inferring Caravaggio's studio lighting and praxis in The calling of St. Matthew by computer graphics modeling", in Proc. SPIE 7531, Computer Vision and Image Analysis of Art, 753105 (February 16, 2010); doi:10.1117/12.840569

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