julho 31, 2014

Entrevista com Luís António, director de arte de videojogos

Luís António nasceu em Lisboa há 32 anos, trabalha em São Francisco na Thekla Inc, mais propriamente como sénior na equipa responsável pela direcção artística do novo projecto de Jonathan Blow, "The Witness", para a PS4. Antes de se aventurar pelo mundo dos videojogos, licenciou-se em Design de Comunicacão na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa.


No passado mês de Março apresentou a comunicação "The Art of the Witness" na GDC 2014, na qual explica minuciosamente o processo criativo por detrás da arte de "The Witness". Foi depois de ver essa talk que tive vontade de o entrevistar. Trocámos alguns e-mails, e aqui ficam algumas questões e respostas. A partir do meio da entrevista, as questões surgem com alusão directa ao que o Luis António nos apresenta nessa comunicação, por isso aconselho vivamente a verem o vídeo da palestra na GDC Vault.




- Porque foste para UK em 2006?
:: No final da minha licenciatura eu já sabia que queria trabalhar na área dos videojogos. Na altura, a industria em Portugal era praticamente inexistente pelo que a única escolha era começar a minha carreira no estrangeiro. A Inglaterra, em termos de videojogos, sempre foi muito desenvolvida e a proximidade de Portugal fez-me sentir que seria um bom sitio para começar.
Mal terminei a licenciatura, comecei a enviar CVs para vários estúdios em Londres, até que acabei por ter uma resposta da Rockstar Games e parti sem olhar para trás.


- O que te motivou a trabalhar em 3d para jogos? O que representam os videojogos para ti?
:: Desde criança que estou rodeado de tecnologia, desde o Spectrum ZX à espera que a cassete fosse carregada até aos comandos do MS-DOS para instalar um jogo (o Doom em 10 floppy disks....). Os meus pais nunca me compraram consolas e por causa disso comecei a apreciar os computadores e a tecnologia tanto pelo lado do entretenimento, bem como pelo da criação.
O nível de intimidade que os videojogos são capazes de criar com o utilizador é fascinante. São o único meio que conheço capaz de produzir experiências que não são estáticas. Ao contrário de livros ou filmes, os videojogos reagem e adaptam-se durante a sua utilização criando emoções e experiências únicas. Também o facto de ser um medium recente faz com que cada projecto seja um desafio novo. Fazendo uma comparação com o cinema sinto que ainda estamos na época das películas a preto e branco e dos filmes mudos.


- Antes de trabalhares nas grandes empresas - Rockstar, Ubisoft - tinhas trabalhado em pequenas empresas? Como é o ritmo e a liberdade criativa nessas grandes empresas? 
:: Antes da Rockstar, como mencionei, estava ainda na Universidade. Nessa altura o meu sonho era ser ilustrador e fazer banda desenhada. Durante esses anos trabalhei como freelancer para vários jornais e revistas (Expresso, Unica, SIC, Maxim, etc).
Foi quando comecei a aprender 3D que reparei que a minha paixão pelo lado digital era muito mais forte. Felizmente a minha experiência em 2D complementou esta nova aprendizagem.
Quanto à liberdade criativa nas grandes empresas… acho que é um processo muito “industrializado” . Existe criatividade mas dentro de modelos pré-definidos. Ao fim do dia o objectivo é fazer lucro, o que faz com que as boas ideias não tenham espaço para crescer.
A Rockstar tem uma identidade muito forte e a filosofia de nunca lançar um jogo até este estar fenomenal, mesmo que se arraste for vários anos, é excelente. Quanto à Ubisoft… ao contrário do que eu esperava,  estão praticamente focados no lucro (o que faz sentido visto que originalmente eram uma Publisher).
O que me atraiu no Canadá foi a promessa de uma equipa pequena,  projectos criativos com muita liberdade e o conforto financeiro de um gigante. Infelizmente, isso traduziu-se em pressão constante por parte dos produtores e accionistas que não confiam na equipa, porque as ideias não se enquadram no modelo de produção que eles consideram seguro.


- Qual é a progressão normal na carreira do 3d no mundo dos videojogos? Artista 3d, Lead Artist, Art Director, o que definem em concreto estas etiquetas?
:: Acho que hoje em dia é difícil definir uma “progressão normal” devido à diversidade de funções/posições que continuam a mudar constantemente à medida que a tecnologia evolui. (e.g. Character Artist, Environment Artist, Texture Artist, Sculpter, etc.).
A progressão em termos de experiência é algo como: Junior Artist (sem qualquer experiência a iniciar a carreira), Artist (3 ou mais anos de carreira), Senior Artist (5 ou mais anos) e depois, dependendo das escolhas pessoais e oportunidades, pode-se chegar a Lead Artist (coordenador de uma equipa ou de uma parte da equipa - eg. Lead Technical Artist ou Lead Character Artist) e finalmente Art Director (coordenador de toda a arte num projecto/estúdio).
Mas mesmo em grandes estúdios estas posições flutuam, dependendo do projecto e dimensão da equipa. Por exemplo, na Valve, pode-se ser um Producer num projecto e Lead Artist no seguinte, dependendo da forma como as respectivas competências funcionam com o resto da equipa.


- Foste para o Quebec para a Ubisoft, mas acabaste por ir parar a San Francisco ao projecto "The Witness". Como é que isso aconteceu, submeteste o CV, tiveste entrevista?
:: Já acompanhava o trabalho dos Indies na zona da São Francisco como Jonathan Blow e Chris Hecker há vários anos.
Ainda no Canadá, troquei correspondência com o Chris com propostas para os personagens de SpyParty. Fiz alguns modelos no Zbrush e mantivemos contacto para criar uma possível colaboração quando o protótipo estivesse suficientemente avançado.
Como demorou mais do que ele estava à espera e eu sentia que era altura de mudar, ele pos-me em contacto com o Jonathan Blow para colaborar com o “The Witness”.
Trocámos correspondência e fiz alguns testes visuais, deslocando-me depois a San Francisco por alguns dias, para nos conhecermos pessoalmente. Sinceramente, estes foram os testes de arte mais interessantes que já fiz. O Jonathan estava mais interessado na minha capacidade em resolver problemas visuais de game design e praticamente desinteressado no meu nível técnico para 3D. Foi um processo muito diferente comparado com os outros estúdios.


- Quando referes que as hierarquias são orgânicas na Thekla, referes-te à ausência de etiquetas hierárquicas, mas como é que isso afecta o vosso trabalho?
:: Sim, neste estúdio não existem hierarquias ou posições. Cada um contribui com o talento que tem. Claro que fomos contratados com base no nosso background (e.g. Programadores, Artistas, etc), mas as disciplinas podem-se cruzar, se necessário.
Acho que o maior impacto é em termos de dedicação e paixão pelo projecto. Cada pessoa participa o quanto quiser e, o facto de não ser obrigada a fazê-lo, cria um laço mais sincero e mais forte de confiança e honestidade.
Todas as discussões acabam por colocar a equipa ao mesmo nível e chegamos a resultados em que todos concordam e ninguém abusa da sua posição. Acaba por nos tornar mais humildes e abertos à crítica, venha de um Júnior ou de um Sénior.


- É inevitável ver o trailer de "The Witness" e não pensar em "Myst", concordas? Estamos perante um jogo sem personagens, ou não? Os architects de que falas são personagens do passado dessa ilha? E as mecânicas são essencialmente puzzles visuais ou existem mecânicas com os objectos de jogo, além do laser?
:: Em termos do game design, infelizmente não posso revelar nada até o jogo sair. Acho que o Myst é, sem dúvida, uma influência (um dos artistas na equipa é Eric Anderson, agora Art Director em Obduction, a sequela do Myst a ser feita pelo estúdio que criou Myst). A maneira como os puzzles são desenhados é bastante diferente, mas em termos de ambiência e mistério sinto que existe definitivamente uma influência.


- Aquilo que aqui nos apresentas é a desconstrução de uma verdadeira aventura científica ao mundo da arte visual. Ou seja, a vossa forma de fazer as Art Guidelines que nos apresentas, não são a normal forma de trabalhar a arte nos grandes projectos, correcto? Porque parecem mais uma abordagem da engenharia, ou de design, em que claramente vocês estão a tentar resolver um problema (What and how to simplify?), e dão passos em direcção a ele, procurando extrair daí regras, padrões de acção para serem replicados no resto do trabalho? 
:: Pergunta difícil… o modo como abordamos a direção artística foi baseada no que eu aprendi e funcionou no passado. Penso que cada projecto e cada estúdio aborda esse desafio de maneira diferente, e a indústria é muito nova para ter modelos bem definidos. A maior diferença em relação a estúdios AAA é que eles não se podem dar ao luxo de ter um protótipo de alta qualidade antes de começar a exploração pelo estilo visual, pois têm uma equipa de +300 artistas à espera de orientação.



- Quem é que desenhou esse objectivo para as Art Guidelines, foi o Blow? Julgas que a sua formação em Computação pode estar de algum modo relacionado com essa lógica?
:: Sim, os objectivos foram definidos por Jonathan Blow. Sempre me impressionou que desde o início do projecto ele tem um objectivo muito especifico para a arte do jogo.
O seu background em programação dá-lhe o poder de criar conceitos sem precisar de terceiros, mas parece-me que é mais a filosofia de vida e o seu modo de pensar que definem a sua lógica.


- Isto leva-nos ao campo da autoria, da visão criativa. E da tua talk pode-se depreender uma filosofia base que nos aponta para algo como, “Da complexidade do Real à Simplicidade e Unicidade de um Mundo Autoral”. De que modo é que esta visão estabelecida para as Art Guidelines se relaciona com a narrativa, e com o gameplay? 
:: Este jogo é baseado em clareza e simplicidade. Ser capaz de transmitir uma mensagem do modo mais puro e preciso possível sem qualquer “ruído” desnecessário.
Visto que os gráficos são o canal principal para a transmissão de informação entre o jogo e a nossa mente, temos que ser extremamente cuidadosos quando criamos a arte do jogo e definir claramente o que deve ser relevante ou secundário.
Seguindo este princípio, acho que podemos dizer que está tudo interligado. O facto de necessitarmos de ter gameplay e narrativa de base para definir o estilo visual, faz com que a arte se torne uma extensão da mensagem do jogo. Esta abordagem permite que os princípios fundamentais do jogo, a mensagem que o Jonathan quer transmitir, seja reforçada pelo aspecto visual.



- No final falas de algo que venho considerando ser de extrema relevância no campo da autoria visual, e que tem que ver com o tempo. Ou seja, para se conseguir imprimir uma marca autoral numa obra visual é preciso tempo de contacto com a obra, e iterações várias ao longo desse tempo. Julgo que concordas, mas gostava de saber como analisas esse processo em termos criativos pessoais?
:: Penso que a quantidade de tempo necessária é relativa. Jogos como “Papers, Please” ou “Ernesto”, o novo jogo de Daniel Benmergui  são exemplos que mostram que realmente importante é ter uma visão clara dos objectivos que pretendemos atingir com o nosso projecto e ser capaz de os destilar no processo de iteração (ambos os jogos foram relativamente rápidos a criar).
Este objectivo pode mudar radicalmente apesar da raíz do conceito já existir na nossa mente;  é quase como criar uma palavra nova.
Este processo pode demorar muito tempo e é fácil para um autor perder-se nessa viagem durante vários anos e chegar a um ponto de saturação e desgaste onde o resultado final não é proporcional ao tempo e esforço despendido. (como por exemplo "Shadow Physics" de Steve Swink)
O “The Witness” mostrou-me que horários e deadlines são inimigos da criatividade e do processo de criação. Uma ideia, enquanto está a ser desenvolvida, não pode ser colocada num projecto com Milestones e Budgets, necessita de espaço para crescer e se redescobrir se necessário.


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