agosto 20, 2016

“Corre, Coelho” (1960)

John Updike é uma das figuras mais emblemáticas da crítica literária americana, tendo ao longo da sua vida (1932-2009) realizado análises de obras dos mais conceituados escritores do século XX, na sua maioria para a The New Yorker. Updike fugiu à norma de que “quem não sabe ensina, ou crítica”, porque sabia, e sabia muito, como fica evidente neste magnífico opus que é “Corre, Coelho”, escrito em 1960, com apenas 28 anos. O livro é o primeiro tomo de quatro, tendo os restantes saído desde então sempre espaçados por períodos de 10 anos, dos quais dois tiveram direito a Pulitzer.


Antes de entrar no livro quero deixar duas referências que senti ao lê-lo. No primeiro terço da minha leitura senti uma enorme proximidade entre o personagem principal, Rabbit e Holden Caulfield de “À Espera no Centeio” (1951) de Salinger, pela zanga com o mundo à sua volta e uma inquietação centrada sobre si muito americana, mas ao chegar a meio do livro, o fascínio pela personagem, capaz de se libertar de todas as amarras, começou a converter-se em desdém e aos poucos mesmo em repulsa, e foi aí que comecei a estabelecer o paralelo com outra obra, “Lolita” (1955) de Nabokov, já que ambas dão vida a personagens repugnantes mas ambas fazem-no por meio de prosa tão graciosa que nos obrigam a continuar a ler, até respeitar a obra.

No campo da escrita Updike apresenta uma capacidade descritiva absolutamente soberba, com um vocabulário rico, mesmo erudito, e um encadeamento frásico capaz de nos manter colados, dotando o texto de um ritmo que sustenta totalmente a nossa atenção e foco. Por vezes temos mesmo Updike a entrar em fluxo de consciência, quando descreve o pensar dos seus personagens, fazendo desses momentos pontos altos do sentir do texto, duas das melhores descrições acontecem quando Ruth e Janice se dão a conhecer.
“Pelo menos tem a sensação de que ‘existe’ para ele em vez de ser uma coisa colada no interior de uma cabeça pervertida. Meu Deus, costumava odiar os homens com as suas bocas húmidas e risinhos, mas quando o fez com Harry perdoou a todos os outros, pareceu-lhe que a culpa era só a meias, que eram uma espécie de muro no qual ela continuava a esbarrar porque sabia que ali havia alguma coisa, e de repente com Harry encontrou essa coisa e esse achado fez com que tudo o que tinha acontecido antes parecesse irreal. Afinal ninguém a tinha de facto magoado, ninguém lhe tinha deixado cicatrizes, e quando tenta recordar-se do que passou parece-lhe por vezes que aconteceu a outra pessoa. Parecem-lhe mais ou menos vagos, como se ela tivesse mantido os olhos fechados, vagos, patéticos e ansiosos, desejando qualquer coisa que as mulheres legítimas não lhe davam, palavrões ou gemidos, ou actos com a boca.” (p.145)
Em relação ao protagonista, Harry Rabbit (Coelho), julgo que que a sinopse do livro dá conta do seu historial, e vendo bem pouco mais sobre este há para dizer. No fim da leitura escrevi algumas frases que me passaram pela cabeça, que transcrevo de seguida, e que julgo darem conta de quem é Harry.
Eu, Eu, Eu, Eu, Eu,
A minha mulher não é suficientemente boa para mim,
O meu filho, a minha irmã, os meus pais, ninguém é suficientemente bom para mim,
O meu emprego não é suficientemente bom para mim,
A minha vida não é suficientemente boa para mim,
Mereço mais, muito mais,
Fui uma estrela. Sou uma estrela.
Ao escrever isto, e confrontando com as várias listas que citam esta série de livros de Updike como imensamente relevantes para compreender a América, não consegui deixar de ver os exploradores do oeste americano, os “self-made man”, ou o americano empreendedor, todos aqueles que não tiveram medo de deixar para trás e seguir atrás do sonho, independentemente de quem fica. E depois encontrei ainda uma entrevista de Updike de 1969 em que este confidencia que o livro lhe tinha surgido como resposta aos beatniks dos anos 1950, nomeadamente a “On the Road” de Kerouac, dizendo:
“o livro pretendia ser uma demonstração realista daquilo que acontece quando um jovem homem de uma família Americana vai para a estrada: as pessoas que ficam para trás magoam-se” (The Cambridge History of American Literature, p.191)
Ou seja, estamos perante uma crítica brutal de Updike à essência individualista da identidade americana, algo que em minha opinião Kerouac viu mais como necessidade de crescimento interior na idade pré-adulta, mas que outros, nomeadamente Ayn Rand, com livros como “The Fountainhead” (1943) e “Atlas Shrugged” (1957), estabeleceram como o fundamento filosófico da identidade americana, essência do capitalismo em contra-ciclo ao comunismo. Se quiserem saber mais sobre Rand, recomendo a biografia em banda desenhada que aqui dei conta recentemente.
“Uma vez vestido, Coelho sente a calma regressar. O acordar devolveu-o de certo modo ao mundo que abandonara. Sentira a falta da presença avassaladora de Janice, do miúdo e das suas incómodas necessidades, das paredes da sua casa. Tinha perguntado a si próprio o que estava fazer, mas agora esses reflexos que só lhe haviam chegado à superfície tinham-se consumido e brotam nele instintos mais profundos que lhe dão toda a razão. Sente a liberdade como oxigénio em seu redor.” (p.53)
Torna-se assim difícil fazer uma leitura prazeirosa do texto, exceptuando a beleza da prosa, mas um livro não é obrigado a fornecer-nos personagens empáticos, a sua recompensa pode surgir por outros meios, nomeadamente fazer-nos pensar, tal como ajudar-nos a compreender melhor a sociedade em que vivemos e os sonhos que propagandeia.

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