fevereiro 05, 2018

Submissão (2015)

O melhor, sem dúvida a premissa, é muito boa, atual e irreverente, questiona tudo aquilo que somos, põe a nu muitas das verdades que assumimos como imutáveis. O bom, a escrita escorreita, direta, editada e com algum ritmo, ainda que sem nunca deslumbrar. O pior, tudo o resto, principalmente o vazio, ou desconhecimento da História, Ciência e vou mesmo ao ponto de dizer que até sobre o Humano, fica aquém do conhecimento expectável num escritor.


Foi o primeiro livro que li de Michel Houellebecq, não conhecia o autor para além de saber que era francês e tinha provocado a ira com o lançamento deste livro, não apenas porque há décadas a França vive uma relação complexa com os muçulmanos dada a relação criada com a colonização da Argélia, entre outras colónias, mas porque o terrorismo islâmico global atingiria a França com grande intensidade, escassos dias após o lançamento do livro, com o massacre de quase toda a redação do jornal Charlie Hebdo. Pela categorização do autor que fui lendo, um intelectual mal-amado e melancólico, parti para este livro com a ideia de que o professor universitário, protagonista do livro, era decalcado do autor. Só no final, porque Houellebecq o declara num agradecimento a uma professora universitária, me apercebi que Houellebecq não terminou os seus estudos superiores, e pelo que li entretanto, não porque não pôde mas simplesmente porque não quis.

Foi bom ter acreditado que Houellebecq espelhava o seu lado pessoal na personagem, pelo menos nunca deixei que o preconceito, quanto ao facto de o autor não conhecer a vida académica, contaminasse o meu sentir pelo que lia. Contudo, ao chegar ao final, e ler aquela declaração ajudou-me a compreender muito melhor o desenho do personagem, e por arrasto de todo o livro. Ou seja, o mundo de Houellebecq é indistinguível do personagem/professor universitário, ambos completamente irreais, ainda que aqui e ali se encontrem traços descritivos de grande acuidade, mas no geral, sente-se uma enorme distância entre a realidade e a fábula criada. Isto podia não ser um problema, quisesse Houellebecq verdadeiramente efabular, mas a mistura com personagens reais da política francesa, assim como instituições concretas, e mesmo nas poucas entrevistas dadas, foi sempre passando a ideia de um autor que quer acreditar, e fazer acreditar, nos cenários que descreve.

A favor, Houellebecq tem o facto de ter nascido na Argélia, e de os pais se terem desligado dele, segundo ele próprio conta na sua biografia, e que fundamenta a mudança de nome. Nascido Michel Thomas, na Argélia, seria mandado para Paris para viver com a sua avó, passando a ter contacto muito reduzido com os pais, daí ter adotado o sobrenome da avó. Tudo isto surge perfeitamente representado na pele do personagem François. Mas é também tudo isto, e agora fazendo uma interpretação psicológica, que embasa todo o texto com uma raiva latente, trazendo para a superfície do livro a sensação de que todos lhe devem: os pais, a família, as mulheres, a escola, o estado, o mundo. Por outro lado, este mau-estar do personagem, provavelmente advindo do próprio autor, acaba por criar uma espécie de anti-herói, que tem servido para nos dar papéis muito interessantes. Não posso deixar de referir que a meio do livro senti Camus presente entre as linhas, mas foi apenas uma leve passagem, Houellebecq está muito distante dele. Apesar de terem ambos nascido na Argélia, e se servirem de personagens que apresentam uma indiferença existencial, para mim, Camus fá-lo numa busca por se compreender a si mesmo, enquanto Houellebecq o faz porque não conhece mais nada.

Indo à essência. A premissa era brilhante, uma França, coração da Europa, governada sob um regime muçulmano. Futurologia, porque escrito em 2015 relatando dados ocorridos em 2022, mas ao mesmo tempo, história alternativa, tal como “O Homem do Castelo Alto” (1962) de Philip K. Dick ou “A Conspiração Contra a América" (2004) de Philip Roth. Mas tal como esses, fica aquém porque se centram em meia-dúzia de factos históricos, um par de dimensões societais, e alguns sentimentos esteoreotipados. O outro, aqui o Islão e os Muçulmanos, surge como algo que vem de fora, totalmente diferente, mas ao mesmo tempo igual, e facilmente assimilável. Pouco ou nada se diz sobre a essência dos regimes islâmicos, usam-se focos de ideias propaladas pelos media, e pouco mais. Onde está a cultura secular islâmica? Onde ficaram os problemas que vivem no dia a dia os milhões de muçulmanos? Onde está o sentir da Mulher muçulmana? Onde ficaram as revoltas que apenas uma pequena ponta do aqui descrito incitariam? Onde estão as forças de intervenção necessárias à imposição de tudo o que aqui se propala?

É verdade que Houellebecq nos diz que o mundo é apresentado segundo a perspectiva de um professor universitário que vive na sua bolha. Doutorado em literatura, conhece apenas os livros, os escritos, neste caso vive para a obra de Huysmans. Mas um livro não é apenas um personagem, menos ainda se esse personagem não tem nada para dizer. Não é porque ele é professor universitário, nem porque fez uma tese de 800 páginas, isso não faz dele um francês da elite, e por outro lado, o que nos é dado sobre ele também não faz dele um personagem das classes sociais francesas. No fundo, François é apenas Houellebecq, e tudo no livro é apenas sobre Houellebecq e o seu mundo. O que diga-se, é pobre e não chega para sustentar tanta maledicência. Voltando a Roth e K. Dick, ambos usaram as fábulas para questionar a realidade e as suas transformações, no caso de Houellebecq, ainda que se possa tentar ler aqui uma proposta de alteração do paradigma civilizacional, nomeadamente um destronar da ciência e um regresso a um passado religioso, é tudo tão simplista que impede o livro de sair do registo de mero panfleto jornalístico.

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