março 26, 2018

Livro: “O Dom” (1938)

Não é um livro fácil e as razões para tal são várias — a estrutura é multilinear e descontínua; a forma é poética e de vocabulário rico mas escrito como torrente descritiva; e o contexto exigido é não só enorme como distante da maioria dos leitores contemporâneos. Não acontece muito, ou quase nada, em “O Dom”, muita nostalgia relatada por emigrantes russos fixados num espaço que é a cidade de Berlim e que tal como o espaço de Dublin, em “Ulisses” (1922) de Joyce, serve a Nabokov para agregar a estrutura fragmentada. Tudo parece sustentar-se num processo de regressão afetiva e na sua descrição por recurso a uma estilística de embelezamento máximo, completamente colada a Proust. Digamos que Nabokov, dotado de enorme virtuosismo, resolveu criar uma obra capaz de homenagear dois dos seus autores favoritos, mas a homenagem não se fica por aqui já que o tema do livro é nada menos que a Literatura Russa do século XIX, ou seja, a homenagem estende-se a Puchkin, Gogol, Tchékhov, Turgeniev, Tchernichevski entre muitos outros. Deste modo, para se poder iniciar algum envolvimento com a leitura desta obra convém conhecer algo destes autores, assim como deter algum conhecimento sobre o antes e o depois da Revolução Russa de 1917. No caso do antes, alguns livros destes autores já dão muitas pistas mas recomendo sobretudo "Guerra e Paz" de Tolstói.


Não conhecia todos os enunciados, faltava-me Puchkin e Tchernichevski, e por isso são os livros que se seguem, embora sejam dois autores em pólos opostos, ou seja, se Puchkin é o grande pai das letras russas, Tchernichevski é não só desconhecido fora da Rússia, como é aqui totalmente ridicularizado. Mas deixarei o meu comentário sobre o capítulo inteiro que se lhe dedica para quando acabar de ler o livro de Tchernichevski, que entretanto já comecei e em poucas páginas deu para quase compreender Nabokov. Digo quase porque tenho de confessar que me custou ler Nabokov, um dos meus autores de referência, num discurso de crítica ad hominem. Aliás, não é por acaso que o capítulo não foi publicado aquando da primeira edição da obra em 1938. Ainda que perceba a qualidade muito fraca de Tchernichevski, só consigo compreender esta reação de Nabokov pelo caráter político que o livro de Tchernichevski adquiriu, ou porque o próprio Nabokov exerce uma crítica constante mesmo a si próprio, como podemos ver no seguinte diálogo (Nabokov não gostava de Dostoievski e era admirador de Flaubert):
“eu tenho gostos diferentes, hábitos diferentes; o seu Fet, por exemplo, não posso suportá-lo, e por outro lado sou um ardente admirador do autor de O Duplo e de Os Possessos, a quem você parece disposto a faltar ao… Há muito em si que não gosto, o seu estilo de São Petersburgo, a sua tara gaulesa, o seu neo-voltaireanismo e o fraco por Flaubert…” (p.342)
As fotografias de Nabokov recordam-me sempre Hitchcock mas também a personalidade que ambos pareciam possuir — de estarem sempre prontos a pregar uma partida a alguém!

Existe um enredo amoroso no livro a que Nabokov faz referência no prefácio, diga-se semi-explicativo da obra, mas é um romance imensamente subtil, ainda que venha dar, em parte, resposta ao título. A essência do livro assenta no processo descritivo do mundo aos olhos de um jovem autor russo, recentemente emigrado para Berlim, à procura de se afirmar enquanto escritor, e nesse sentido, apesar de Nabokov dizer nesse prefácio que não é Fyodor, é ele quem ali vemos representado. Mais uma aproximação a Proust, que descreve o mundo através dos olhos de Marcel sem nunca dar conta de qualquer ligação com este. Aliás, na primeira parte o tom é bastante próximo do livro autobiográfico de Nabokov, “Fala Memória”, que só viria a escrever anos mais tarde. E já agora, a meio do livro acontece algo no mínimo estranho, ou talvez não, que é uma descrição breve do enredo de “Lolita” (1955), seguida de uma referência do protagonista que me obrigou a parar e ir verificar datas, dizendo “É estranho, pareço lembrar-me dos meus trabalhos futuros”. Ou seja, o romance existia muitos anos antes na cabeça de Nabokov.

Para se poder entender este texto, já disse que conhecer os autores acima é relevante mas é também relevante lerem mais sobre a obra — a sua data de criação, a vida de Nabokov, a sua fuga da Rússia, a política do país — e para tal recomendo vivamente o livro de Yuri Leving “Keys to the Gift: A Guide to Vladimir Nabokov's Novel”. Leving criou um compêndio das múltiplas abordagens possíveis à interpretação mas não é preciso lerem tudo, basta que leiam as entradas que mais vos interessarem. As chaves apresentadas por Leving vão desde a criação e publicação da obra ao contexto histórico do país e da literatura, passando pela análise da estrutura — altamente detalhada nos seus constituintes de título, enredo, narrativa, cenário, personagens, tema — ou do estilo, forma e método, ou ainda da receção crítica nas diferentes épocas, e muito mais. Digo que não é preciso ler tudo, porque o texto de Nabokov está tão carregado de símbolos e subtextos que tentar compreender tudo está apenas ao alcance de um labor intenso, fazendo deste uma boa obra para a realização de trabalhos académicos no campo da literatura.

Deixo uma breve explicação estrutural. O livro começa com um capítulo de contextualização da vida de Fyodor em Berlim, que aos poucos nos vai dando conta da sua vida passada em São Petersburgo, dos amigos deixados e dos novos entretanto criados. Nesta primeira fase Fyodor só escreve poemas. No segundo capítulo Fyodor recorda o pai, que tal como o pai de Nabokov morreu quando este tinha cerca de 25 anos, o capítulo é intenso e belo, e segundo os críticos segue o estilo de Pushkin. No terceiro capítulo temos uma mudança de espaço e o encontro com a amada, a escrita é menos embelezada mas mais escorreita, o estilo mudou novamente porque agora é Gogol que Nabokov nos dá. O quarto é o tal capítulo banido, não segue propriamente Tchernichevski, já que a abordagem é profundamente satírica, mas é completamente diferente de tudo o que veio antes e virá no último. Por fim, voltamos ao nosso heróis Fyodor e a Zina, com o mundo a desejar recompor-se e a querer criar espaço para que o espírito do artista possa florescer.

O livro termina mais uma vez homenageando Proust, já que é dado a entender que o livro que lemos será o que Fyodor escreveu, e tal como em Proust cria-se uma urgência por voltar ao início e reiniciar a leitura, reler tudo com um novo olhar capaz de ler mais dentro das múltiplas camadas que protegem o sentir de Nabokov em “O Dom”, já que é inevitável sentirmos ao longo de toda a leitura que muito do que vamos lendo é-nos vedado, não só por falta de referências, mas também porque o próprio texto trabalha num modo auto-referencial muito joyciano.

Sobre a profundidade da análise da psicologia humana, algo caro a Nabokov, um estudioso da psicologia e muito crítico da fantochada de Freud, veja-se o seguinte descrito do que responde Fyodor a um potencial crítico do seu livro:
“Ao princípio queria escrever-lhe uma carta a agradecer, sabe, com uma referência comovente ao meu pouco mérito e assim por diante, mas depois pensei que dessa forma iria introduzir um odor humano intolerável no domínio da liberdade de opinião. E além disso, se escrevi um bom livro, era a mim que devia agradecer e não a si, tal como você deve agradecer a si próprio e não a mim por compreender o que é bom, não é verdade? Se nos pomos com vénias um ao outro, então, logo que um pare, o outro sentir-se-á magoado e ir-se-á embora vexado.” (p.339)
No final questiono-me se o título português é o melhor, mas por mais que procure, as interpretações são tantas que não é possível dizer muito, a não ser talvez que o título em inglês dá-se melhor às múltiplas leituras. No inglês (“The Gift”) pode significar Dom mas pode significar também Prenda, e se o nosso título atira imediatamente ao virtuosismo do escritor, o inglês permite ainda apontar para a homenagem à Literatura Russa, funcionando este livro como uma prenda de Nabokov em modo de despedida, já que este seria o seu último livro escrito em russo.

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