outubro 09, 2013

como ser criativo

O último episódio da OffBook fala-nos sobre a criatividade, um tema que diga-se começa a apresentar alguma saturação. Ainda assim, e para quem trabalha na área, é importante estar atento ao que se vai dizendo, pois encontram-se se sempre pequenos apontamentos relevantes. Neste episódio procura-se definir a criatividade, e perceber o que torna um sujeito criativo.


Nas definições lançadas podemos encontrar atualidade nas afirmações realizadas que procuram desfazer alguns mitos como: a funcionalidade dos lados direito e esquerdo do cérebro; o artista excêntrico; ou ainda o das ideias surgirem de um ponto desconhecido no interior do nosso cérebro. A criatividade é complexa, mas não cai do céu, como nos diz Kirby Ferguson,
"Creativity is a very messy affair, this notion that its coming from nowhere, I think is false." Kirby Ferguson
Essencialmente ser criativo, implica um trabalho continuado de absorção do mundo que nos rodeia, em paralelo com uma constante motivação para fazer, transformar e modificar esse mesmo mundo.

outubro 08, 2013

Catherine (2011), pecados do storytelling interactivo

Tinha demasiadas expectativas em relação a Catherine (2011). Li vários textos que apontavam este videojogo como capaz de elevar o nível do estado da arte do storytelling interativo. As razões apresentadas para a inovação, tinham que ver com o facto da obra trabalhar questões do nosso foro íntimo, e através destas conseguir atingir níveis emocionais pouco usuais no storytelling interactivo. No entanto, e apesar de apresentar alguns pontos interessantes, a experiência acabou por se fechar numa desilusão.


Começando pelo melhor do jogo, a sua estética. Aqui o jogo é um autêntico sopro de frescura no panorama atual. Catherine aparece em várias listas como um dos jogos mais esquisitos de sempre, mas não concordo. O que Catherine faz, é tão simples como colar-se completamente ao manga e anime, elaborando todo o seu universo temático, tanto visual como em termos de história, a partir desses outros dois universos bastante conhecidos. Ou seja, o mundo de Catherine não é estranho por ser novo, pode dizer-se que é estranho por no ocidente estarmos pouco habituados à estética japonesa, nada mais.

Depois no campo narrativo, Catherine segue alguns dos cânones tradicionais da anime. História semi-adulta, com personagens nos 30 anos ainda a enfrentar a vida com muita ingenuidade, típico de quem está ainda a acordar para a vida. A relação amorosa apresentada, e o modo como é trabalhada encaixaria na perfeição no meio da maioria das séries anime do género. Depois o universo dos sonhos, ou pesadelos, apresenta a componente mais estranha mas que vai totalmente de encontro também ao chamado universo anime, que busca sempre a introdução de um qualquer elemento estranho que induza ao desconforto da familiaridade dos personagens, apesar disso, continuando sempre sob um tom bastante humorístico.

O pior vem mesmo quando chegamos ao chamado storytelling interactivo e à capacidade para entrosar história e jogo. Ao início sentimos que os pesadelos, ao serem apresentados sob a forma de um puzzle complexo (com a mesma mecânica de Boxxle (1989) mas em 3d) que temos de resolver para escapar ao pesadelo, fazem sentido. Cada vez que vamos dormir, entramos naquele mundo estranho cheio de decisões a tomar, e em que temos de escapar à pressão dos desafios e do tempo. Mas ao fim de algumas vezes, começamos a sentir o universo do sonho, ou de jogo, totalmente separado do universo de acordado, ou de história. Se conceptualmente a ideia é forte, no videojogo faltou engenho para dar vida à progressão do entrosamento. A meio do jogo já percebemos que tudo passa pelo jogo, e se queremos saber mais da história, temos de continuar a resolver puzzles, e que a única coisa que nos aguarda são mais puzzles, e cada vez mais complexos.

Acordado - História

A sonhar - Jogo

Esta falta que notamos na consequencialidade entre jogo e história, acaba por trespassar para o domínio do próprio storytelling interactivo. Catherine limita-se a fazer perguntas ao jogador, é verdade que sobre assuntos extremamente íntimos, mas não chega usar um tema impressivo. Precisamos de sentir que as questões, e as nossas respostas, estão também elas intimamente ligadas ao destino do jogo. Que tudo não passa de um mero questionário, com check-boxes, para que o algoritmo do jogo vá decidindo o caminho a seguir, vá escolhendo os trechos de animação a tocar de cada vez que respondemos a uma pergunta. E é isso que começamos a sentir, à medida que nos aproximamos do fim do jogo. Cheguei a sentir, que estava ligado naquelas linhas telefónicas de apoio à saúde, em que a pessoa que está do outro lado nos vai lendo um questionário, e nós vamos respondendo, e no final o computador emite um diagnóstico. Impessoalidade, foi o que acabei a sentir no final da experiência.

A uma determinada altura no videojogo começo a questionar-me sobre as respostas que vou dando. Será que devo responder aquilo que verdadeiramente sinto; será que devo responder aquilo que acredito que o jogo espera de mim; ou será que devo responder aquilo que quero que o jogo faça por mim? Como já falei aqui a propósito de The Last of Us, estamos já no reino do brincar, e não do jogar. Dou por mim a improvisar, a testar o sistema, a brincar com as ideias dos autores do jogo. E se inicialmente me dá algum gozo, ele esvai-se quando percebo que o algoritmo que regula as minhas respostas é demasiado retorcido, para eu conseguir fazer sentido dele, e por isso todas as minhas tentativas de jogar verdadeiramente com ele, saem goradas. Por isso desisto, e avanço respondendo ao que me é pedido, apenas com vontade de ver o final do jogo, de perceber o que me espera.

Mas aquilo que me espera, já não é aquilo por que eu anseio. Porque sei que aquilo que me aguarda no final do "meu" jogo, é apenas um dos múltiplos finais possíveis. Tudo o que investi no jogo, está longe de ter um sentido, de me oferecer uma visão do mundo, porque pretende apenas e só ir de encontro à minha visão pessoal do mundo. Ou seja, não me surpreende, não me emociona, porque não existe diferença suficiente entre o que eu sou, e aquilo que se me apresenta, não existe mundo novo a desbravar. E mesmo que o faça, sei que noutro final não o fará, se eu voltar a jogar e der respostas diferentes. O jogo cai então em pedaços, e transforma-se num brinquedo. Um brinquedo em que apenas interessa a interação constante, o processo de experimentar, e não o fim, o que ele tem para nos dizer, porque nada tem, não há verdadeiramente um objectivo, não há uma ideia que o autor tenha para nos comunicar.

Catherine apresenta 8 finais distintos (IGN)

Talvez este seja o maior pecado do storytelling interactivo, acreditar que por meio de bulas de questões pode gerar experiências personalizadas que dirão muito mais a cada um de nós. Quando na verdade aquilo que interessa ao receptor, não é a personalização, mas antes a crença num mundo ficcional, a empatia com os personagens desse mundo, e a ligação directa ao sentir do criador desse mundo...



Declaração de interesses: Joguei uma cópia do videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores ou editores do jogo.

outubro 07, 2013

a essência técnica

Finalmente Keloid foi lançado. Tinha aqui falado do teaser em 2011, esta semana a espanhola Big Lazy Robot publicou finalmente a curta terminada. Criada como modo de fugir às pressões comerciais, apresenta-se como o melhor cartão de visita que uma empresa de VFX pode apresentar.


Este é um daqueles trabalhos que fruímos pela sua essência técnica. Confesso que o teaser me tinha deixado com maiores expectativas e que três minutos eram manifestamente insuficientes para dar lastro a todas as ideias que pululavam no ecrã. Talvez por isso tenha revisto o filme duas vezes de seguida, para poder saborear mais deste trabalho assombroso.

Ao longo dos curtos três minutos sentimos o experimentalismo visual tocar o seu zénite. Foram dois anos de trabalho que a BLR condensou em técnica e arte. O visual e o movimento apresentam um ritmo por vezes cliché, mas é desse cliché que vemos sobressair a inovação. Keloid não depende da história, a narrativa é aqui mero adereço, porque a experimentação está apenas interessada em induzir um estado emocional no espectador, a alegria de presenciar uma obra visual tão perfeita quanto tecnicamente é hoje possível.

Keloid (2013) da Big Lazy Robot

outubro 04, 2013

Filmes de Setembro 2013

O cinema no mês de Setembro foi curto, mas valeu a pena. Dois belíssimos trabalhos de autores de quem não se espera nunca algo menor, Kiarostami e Malick. Um outro trabalho que me surpreendeu veio de  Bollywood. Udaan pertence a um restrito grupo de filmes da indústria indiana, que falam uma linguagem capaz de gerar empatia nos espectadores do ocidente. Na verdade se fosse um filme americano, o seu interesse seria muito mais reduzido. O que é relevante aqui é a forma como o filme nos permite entrar pela cultura da classe média da Índia adentro e ficar a conhecer modelos familiares e de educação muito distintos. Mais do que isso, que por mais que a cultura nos separe, as nossas emoções humanas continuarão a aproximar-se sempre muito. De resto duas desilusões, esperava muito mais de Le Capital de Costa-Gravas, um autor de que gosto particularmente. Le Capital é um filme interessante mas fica-se por isso mesmo. A desilusão mais gritante foi no entanto com Planes da Pixar. Uma manobra de marketing, sem conteúdo, sem força, sem ideias. Um trabalho 3d fraco a servir de fundo a uma história carregada de clichés piores que pastilha elástica mascada.

xxxx Like Someone in Love 2013 Abbas Kiarostami France

xxxx Udaan 2010 Vikramaditya Motwane India

xxxx Days Of Heaven 1978 Terrence Malick USA


xxx Le Capital 2013 Costa-Gravas France

xxx World War Z 2013 Marc Forster USA

xxx Confessions 2010 Tetsuya Nakashima Japan

xxx A Boy and His Dog 1975 L.Q. Jones USA


x Planes 2013 Klay Hall USA

outubro 03, 2013

os sonhos de Bergman

A Criterion Collection acaba de publicar no YouTube um ensaio audiovisual de Michael Koresky sobre a obra de Ingmar Bergman, intitulado "Bergman's Dreams" (2013). Como o próprio título indica, o documentário centra a sua análise sobre o modo como Bergman trabalhava a ideia de sonho nos seus filmes.


Na verdade, Bergman dizia que nenhuma outra arte conseguia capturar o sonho como o cinema. A sua capacidade para capturar sempre apenas uma fração da realidade, uma contínua ilusão sem qualquer ponta de realidade, levava-o a comparar o cinema com o sonho, e dizer que ambas as realidades eram impossíveis de suscitar confiança.

"we can't trust reality on film, anymore than we can trust in dreams"

outubro 02, 2013

biografia de Ayn Rand em banda desenhada

Nos últimos anos o nome Ayn Rand surgiu de novo com muita força, muito motivado pelo desastre financeiro de 2007. Nesse sentido trago aqui um magnífico trabalho, "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham, uma biografia em banda desenhada online, que utiliza como base as obras "Ayn Rand And The World She Made" de Anne C. Heller e "Goddess of the Market: Ayn Rand And The American Right" de Jennifer Burn.



A crise, que começou em 2007 nas praças financeiras americanas, foi apontada como o colapso esperado das teorias das economias de mercado, da total desregulação e liberalização do comércio. As leis e o estado, por não poderem antecipar todos os impactos das suas ações, deveriam ser retiradas da equação. O "laissez-faire" ou neo-liberalismo defendia que uma sociedade submetida à auto-regulação do mercado, seria capaz de garantir o melhor para todos, porque regulada em função dos "processos homeostáticos" da procura e oferta. Alan Greenspan, diretor da Reserva Federal Americana durante 20 anos, foi um dos maiores mentores desta desregulação que se iniciou nos anos 1980 com Reagan, e um fervoroso seguidor da "filosofia" de Ayn Ran.

Resumo do livro "The Fountainhead" de Ayn Rand [página 16 de "Ayn Rand" (2013) de Darryl Cunningham].

Deste modo podemos dizer que por detrás desta crise que ainda vivemos, existe um legado de Ayn Rand e por isso mesmo se torna extremamente relevante perceber melhor quem foi esta pessoa, o que pensava, como, e porquê. E este trabalho de banda desenhada faz um excelente trabalho respondendo a estas questões.

Antes desta crise o nome de Ayn Rand sempre me soou a culto, a seita. Depois de ler este opus de banda desenhada, fiquei com a certeza de que não se tratou de mais nada do que isso. Uma pessoa que passou por uma infância complexa, com momentos de grande stress, através da sua enorme capacidade de racionalização lógica do mundo, desenvolveu toda uma visão daquilo que o mundo deveria ser, como forma de resposta aos seus maiores medos e privações de infância. A sua argumentação lógica acima da norma, foi capaz de convencer muitos de que tudo aquilo fazia sentido.

A chamada filosofia de Rand, o "objectivismo", apresenta ideias muito fortes, e por isso atrai muitas pessoas, mas a sua argumentação está carregada de buracos, contradições, e problemas irresolúveis. Para alguém com capacidade para desenvolver ideias e argumentos tão lúcidos, acaba por ser decepcionante o facto de Rand não ter conseguido detectar ela própria esses problemas, o que inevitavelmente nos leva a questionar sobre a sua sanidade mental. Confronte-se o objectivismo com aquilo que nos diz Frans de Waal em "The Age of Empathy" [análise resumo] ou o que nos diz Paul Tough em "How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" [análise resumo].

Podem ler as 63 páginas de  "Ayn Rand" (2013), na ACT.I.VATE.

outubro 01, 2013

cognição e biologia na base do sucesso

"How Children Succeed: Grit, Curiosity, and the Hidden Power of Character" (2012) de Paul Tough, procura respostas para o sucesso e insucesso das crianças nas sociedades modernas. Vem de encontro a muitos estudos que se têm feito nos últimos anos no campo cognitivo e biológico, apresentando algumas novidades a partir desse cruzamento de saberes. É um livro de divulgação jornalística que procura iluminar um pouco mais sobre a área, sem tentar dar respostas cabais, ou receitas, assumindo que modelos padrão para lidar com a individualidade das crianças, é coisa que não existe. O livro apresenta uma teorização interessante à volta da oposição entre as competências cognitivas, avaliadas pelos testes de QI, e os traços de personalidade como a curiosidade, a escrupulosidade, a auto-disciplina, ou a resiliência.


Assim o fundamento que suporta todo o livro, e é o seu contributo mais interessante, passa pela apresentação da provável razão pela qual as crianças falham na escola, acabando por fracassar nas suas vidas, incapazes de  concretizar os seus sonhos, contaminando as gerações que os rodeiam. Durante décadas acreditámos, e os estudos demonstravam isso mesmo, que as crianças provenientes de lares mais pobres tinham menor sucesso escolar. As razões prendiam-se com a falta de estimulação cognitiva em casa, tanto pela pobreza expressiva dos pais, como pela falta de acesso a cultura e abertura à diferença.

O grande problema desta análise é que ela estava baseada numa única causa do sucesso, aquilo que Tough, chama de "Hipótese Cognitiva". Esta hipótese assenta a causa do sucesso exclusivamente em competências cognitivas do tipo verbal, matemáticas, análise de padrões, no fundo aquilo que avaliamos nos chamados Testes de Inteligência. Aquilo que Tough aqui apresenta são vários estudos realizados nos últimos anos nos campos da psicologia, economia, educação e neurociência que vieram acrescentar um novo ingrediente a esta análise, o "carácter", e que é constituído por qualidades, ditas não-cognitivas, como a preseverança, consciência, otimismo, curiosidade e auto-controlo. Para suportar esta ideia, Tough apresenta dois estudos que por si só são suficientes para demonstrar toda a racionalidade por detrás desta teorização.

1 – A hipótese cognitiva: QI
O Programa GED, é um programa americano que permite aos alunos que desistiram no secundário, ter acesso a um diploma do secundário, mediante a realização de um exame que avalia se estes possuem as mesmas competências cognitivas dos alunos que frequentaram o secundário. O fundamento deste exame é a hipótese cognitiva, que acredita que um aluno que possua as mesmas competências cognitivas de um aluno do secundário, não deve perder tempo a fazer a escola, pode realizar o teste e obter o mesmo reconhecimento do estado que o outro aluno.

O que confere com os estudos realizados à posteriori, em termos de QI, que demonstraram que os alunos que fizeram o GED não se diferenciavam dos alunos que tinham feito toda a escola. O problema surge quando analisamos o desenvolvimento e progresso destas pessoas para além deste patamar. Nos estudos realizados por James Heckman, este encontrou que
“just 3 percent of GED recipients were enrolled in a four-year university or had completed some kind of post-secondary degree, compared to 46 percent of high-school graduate (..) that when you consider all kinds of important future outcomes—annual income, unemployment rate, divorce rate, use of illegal drugs—GED recipients look exactly like high-school dropouts, despite the fact that they have earned this supposedly valuable extra credential, and despite the fact that they are, on average, considerably more intelligent than high-school dropouts” (p.13)
Ou seja, o que podemos ver a partir daqui, é que os alunos que realizaram o ensino secundário, ao terem persistido na escola, obtiveram algo mais do que as competências cognitivas, que os levou a suceder no seu futuro. Heckman conclui que
“what was missing from the equation... were the psychological traits that had allowed the high-school graduates to make it through school. Those traits - an inclination to persist at a boring and often unrewarding task; the ability to delay gratification; the tendency to follow through on a plan - also turned out to be valuable in college, in the workplace, and in life generally” (p.13)
Visto apenas através deste estudo, estamos no reino da pura especulação, o número de variáveis não controláveis é demasiado grande. Contudo os estudos sobre esta hipótese, não se resumem a isto. São muitos os estudos conhecidos sobre a relação entre as competências de auto-controlo e de sucesso na vida, nomeadamente o experimento do Marshmellow de Walter Mischel, mas não só. Tough apresenta ainda vários estudos referentes ao carácter que suportam estas evidências. Mas antes de entrar nesses, quero apresentar o segundo ponto que foi para mim imensamente revelador desta hipótese, mas também daquilo que está em jogo na educação das crianças desde tenra idade.

2 – Hipótese Biológica: Stress
Um estudo realizado em 2009 por Gary Evans e Michelle Schamberg da Cornell University procurava estudar as diferenças entre as crianças provenientes de estratos diferenciados, tendo como metodologia testes das funções-executivas (as funções cognitivas responsáveis pelo planeamento e execução de atividades). Usaram como corpo de estudo, 195 jovens com 17 anos, que já seguiam desde que tinham nascido. Metade viviam em ambientes abaixo da linha de pobreza, e a outra metade em típicas casas de classe-média. O teste consistia no simples jogo “Simon Says” (na foto abaixo).


A primeira descoberta, foi que os miúdos que tinham passado mais tempo abaixo do limiar da pobreza, apresentavam menor desempenho no jogo. Ou seja, uma criança que tivesse vivido 10 anos abaixo do limiar, desempenhava pior do que um que tivesse vivido apenas 5 anos. Até aqui nada de novo. A novidade do estudo aconteceu quando eles levaram em conta a medição de variáveis biológicas – pressão sanguínea, índice de massa corporal, e níveis de hormonas ligadas ao stress, tais como o cortisol – que tinham realizado aos 9 anos de idade, e novamente aos 13 anos, para determinar os níveis de stress, ou em termos científicos, a "carga alostática" (“allostatic load”) das crianças. Interessava analisar os níveis de stress fortes, causados por situações como,
“physical and sexual abuse, physical and emotional neglect, and various measures of household dysfunction, such as having divorced or separated parents or family members who were incarcerated or mentally ill or addicted” (p.29)
Assim conseguiram correlacionar as três variáveis: os resultados dos testes do jogo; com o historial de pobreza; e com a carga alostática. Mas foi ao aprofundar a análise estatística, que se deu o choque: a variável de pobreza era irrelevante. Não era o fator do tempo vivido na pobreza que condicionava a capacidade cognitiva no jogo, mas antes era o stress vivido. Ou seja, até aqui podíamos pensar que a criança de classe média alta, apresentava melhores resultados na memorização de padrões, por ter genes provenientes de pais bem sucedidos, por estar numa escola melhor, por ter acesso a mais jogos, livros e informação. Mas o que descobrimos foi que uma criança que viva no seio de uma família pobre, mas tenha estabilidade emocional, proporcionada por uma família carinhosa e protetora, que não tenha de atravessar situações de grande stress na sua vida, pode apresentar o mesmo desempenho da criança dita rica.

O stress afecta o crescimento do nosso cérebro. Em confronto com uma situação stressante, o nosso cérebro manda libertar hormonas no sangue, que produzem emoções de ansiedade e medo. Quando estas ações acontecem muitas vezes, e nomeadamente com grande intensidade, sem qualquer atenuação por parte dos seres próximos, família, o corpo vai ganhando habituação a viver sob stress, ou seja passa a reagir de forma muito mais carregada, por não poder antecipar apaziguamento. Os sujeitos passam a conseguir controlar com menor eficácia os seus níveis de stress, e os seus impulsos descontrolam-se muito mais facilmente. Deste modo quando são confrontados com novas situações, como a realização de provas, testes, exames ou responder a um pedido ou ordem de um colega ou professor, tendem a reagir de forma mais impulsiva, já que a ansiedade sobe, e o medo toma conta das suas ações. Esta impulsividade nem sempre é exteriorizada, certos indivíduos tornam-se agressivos, outros simplesmente bloqueiam interiormente.

Assim, a carga alostática, torna-se na variável mais importante a controlar, para garantir o acesso ao estágio inicial, isto é a permanência e realização da escola por parte da criança. Num estudo no Cook County Juvenile Temporary Detention Center, encontraram-se as seguintes variáveis,
 “84 percent of the detainees had experienced two or more serious childhood traumas and that the majority had experienced six or more. Three-quarters of them had witnessed someone being killed or seriously injured. More than 40 percent of the girls had been sexually abused as children. More than half of the boys said that at least once, they had been in situations so perilous that they thought they or people close to them were about to die or be badly wounded” (p.49). 
3 – Treinando o Carácter
O resto do livro é passado a discutir formas, métodos e modelos para treinar o carácter. Tough acaba socorrendo-se da Psicologia Positiva, dos trabalhos de Martin Seligman. No livro Character Strengths and Virtues: A Handbook and Classification (2004) Christopher Peterson e Martin Seligman apresentam uma primeira abordagem para identificar e classificar os traços psicológicos positivos dos seres humanos. Aí são descritos os caracteres essenciais, categorizados em 6 grandes virtudes. Desse modo criaram uma tabela e testes que permitem apontar o carácter, e permitem definir objectivos a atingir, que como diz Tough, não são imbuídos de moral nem ética, mas antes de efeitos práticos de realização na vida. As seis virtudes aqui apresentadas, são fruto de vastos estudos através do tempo e de forma inter-cultural.


Tough investe bastante tempo a trabalhar dois exemplos de escolas americanas, uma delas a academia KIPP, reconhecida pela sua capacidade para pegar nos alunos e conduzi-los até a Universidade. A discussão em redor dos elementos essenciais que definem o caráter é grande, e sem consensos, no entanto todos reconhecem a sua enorme importância. Deixo aqui uma tabela de diagnostico de carácter aplicada na KIPP.

Nesta tabela da KIPP fica bem evidenciado que a solução para formar miúdos para seguirem um caminho bem sucedido, está longe de se determinar pela mera lecionação de disciplinas de matemática, línguas ou outras. A formação do ser humano, ao nível do carácter, é extremamente relevante para que este consiga potenciar o melhor de si. É claro que muito disto devia vir de casa. E eu continuo a acreditar que a função da escola, é educar a mente, enquanto a da família é educar o carácter. Mas sei também, que uma grande parte das famílias não está preparada para dar esta bagagem aos seus filhos. Não chega ter estudado, ter dinheiro, ter acesso, é preciso mais do que isso, é preciso compreender o mundo em que se vive, e acima de tudo, educar todos os dias para a vivência com o outro. Cada vez acredito mais, que tudo se resume à interação social, que é aí que reside o cerne que alavanca todo o nosso desempenho nas restantes áreas.

setembro 30, 2013

Year Walk (2013)

Simogo é um estúdio de jogos sueco, e um dos mais relevantes da plataforma iOS. Depois de Kosmo Spin (2010), Bumpy Road (2011) e Beat Sneak Bandit (2012) chega-nos agora Year Walk (2013). Para quem vem seguindo o seu trabalho, percebe-se de imediato que Year Walk não segue o mesmo lado colorido e divertido dos jogos anteriores, antes pelo contrário, a Simogo criou uma experiência completamente nova, com uma atmosfera pesada, para o ambiente iPad.



Year Walk tem dois atributos que fazem dele um dos melhores jogos de sempre, feitos para o iOS, o design de interação e o design de experiência. No campo da interação Year Walk apresenta-nos um sistema de navegação espacial extremamente rico, porque inventa a partir do potencial proporcionado pela interface de toque do iPad. A manipulação da navegação decorre do arrasto dos nossos dedos, mas a navegação decorre através de movimentos em paralaxe de várias camadas do cenário. Ou seja, utilizando uma técnica de movimento gráfico, a Simogo consegue criar uma ilusão bastante apurada de profundidade de campo, sem ter de se socorrer de criar ambientes em 3D.

Por outro lado é exatamente através do uso da ilustração em 2D que a Simogo consegue criar toda uma experiência estética particular. O ambiente pesado é gerado através da ilustração de cenários pouco saturados e escuros assentes em mitologia gótica, criando a ideia de que nos passeamos através de telas pintadas. A experiência é ainda tonificada pela interacção com navegação, que apesar de bastante intuitiva, nos mantém o tempo todo perdidos no espaço, gerando ansiedade, a emocionalidade pretendida pelo jogo. O design de som é também essencial no desenho da experiência (ex. os nossos passos sobre a neve) pois contribui para intensificar a credibilidade da navegação no espaço, e desenhar a emocionalidade pretendida.

A evolução no mundo do jogo segue um modo narrativo que vai densificando a história dando-nos mais conhecimento sobre os mitos e aumentando o nosso interesse sobre os mesmos. Ao mesmo tempo cada desvelamento na progressão narrativa vai aumentando o seu nível de complexidade, o que por vezes joga contra a nossa vontade de continuar a procurar responder aos puzzles. No campo dos puzzles, Year Walk relembra as dificuldades de Myst. Temos aqui um jogo de aventura gráfica, e não de ação-aventura moderno do tipo que nos habituou a ter ajudas cada vez que empancamos. Somos obrigados a ir buscar papel e lápis, tirar notas, construir ligações, apontar dados, símbolos, números, criar combinações para assim dar respostas aos enigmas que o jogo nos vai colocando.

Resoluções em papel dos enigmas (imagem de Ben Chudac)

Mas se quisermos obter o máximo do jogo, nomeadamente no campo narrativo, torna-se inevitável descarregar o Year Walk Companion, uma pequena aplicação que a Simogo criou com o intuito de nos dar mais informação sobre as mitologias por detrás de Year Walk. Inicialmente o Companion parece não nos dizer muito, mas à medida que vamos avançando no jogo, vamos começando a fazer sentido deste, e a informação que ele nos fornece torna-se essencial para uma experiência mais completa do jogo. Depois de jogarem leiam o making of na Edge.



Declaração de interesses: Joguei uma cópia deste videojogo adquirida pelos meus próprios meios. Não tenho qualquer relação comercial com os autores e editores.

setembro 25, 2013

o fascínio da profundidade visual num plano a preto e branco

Quando acabei de ver "Platinum Palladium Printing with Leica M Monochrom" (2013), do Luís Oliveira Santos, fiquei sem palavras. Dez minutos em que nada se conta, tudo se mostra, num contraste de luz tão apurado, que levou o meu âmago a se abrir por completo à vontade do filme.



Conheço o Luís, mas descobri este trabalho por acaso nos feeds do Vimeo. Vi uma imagem a preto e branco dentro da janela do Vimeo, e depois vi um nome português, e depois pareceu-me ser o do Luís, fiquei surpreendido porque não conhecia este seu trabalho. Entrei na página do Vimeo Staff Pick, carreguei em "play", e fiquei ali estupefato, imóvel, a olhar, e a sentir. O brilho, o contraste daqueles primeiros minutos são absolutamente hipnotizantes. Só me apetecia dar os parabéns a quem tinha criado aquela pequena pérola. Nesse sentido, devo dizer que é um privilégio para mim conhecer pessoas assim, tão dedicadas à arte que amam, e por isso não resisti a fazer-lhe algumas perguntas em jeito de entrevista que deixo abaixo, depois do filme.

O selo Vimeo Staff Pick é atribuído por uma equipa de curadores do Vimeo, e é apenas atribuído a filmes de elevada qualidade. Para além do que também já disse, restam poucas dúvidas sobre essa qualidade, mas para complementar esta garantia, digo ainda que nos comentários ao filme, podemos encontrar comentários distintos, como os de Nabil Elderkin, realizador de videoclips para os Artic Monkeys, James Blake, Daft Punk, Seal ou ainda do fantástico Cut the World dos Antony and The Johnsons.

"Platinum Palladium Printing with Leica M Monochrom" (2013) de Luís Oliveira Santos


1 - Como surgiu a ideia para o filme? É um trabalho pago, ou simples hobby, vontade de fazer e de dar a conhecer? Quais as maiores dificuldades na realização, e quanto tempo levou a fazer, desde pré-produção à pós-produção?
:: O Manuel Gomes Teixeira é um fotógrafo que conheço há muitos anos e com quem mantenho uma boa relação de amizade. Ele nos últimos anos tem-se especializado na impressão de platinotipia e tem uma página electrónica onde se podia ver um pequeno filme que demonstrava o processo em laboratório.
Entretanto o Manuel foi convidado pelo representante da Leica em Portugal a testar a Leica M Monochrome, a desenvolver com a máquina algumas fotografias impressas nesse processo de ampliação. Este teste culminava com a apresentação em Lisboa e no Porto, perante um público convidado da Leica, dos resultados do teste.
O filme surge então de um pedido e de um convite que o Manuel me fez no sentido de realizarmos um pequeno filme que mostrasse o processo de laboratório, processo esse que não poderia ser recriado ao vivo nas sessões de apresentação. Não foi um trabalho pago dada a amizade que nos une há muitos anos e dadas as sucessivas "contribuições" que ambos fazemos ao trabalho mútuo.
Uma das maiores dificuldades na realização prendeu-se com o tipo de luz existente. O processo de platinotipia pode desenrolar-se à luz (uma vez que a emulsão apenas fica velada com grandes quantidades de ultravioleta). Contudo o laboratório do Manuel Gomes Teixeira possui uma iluminação de fraca intensidade que emite numa frequência que cria interferência com a frequência de captação da máquina fotográfica. É como se se filmasse o écran de uma televisão em que a frequência de transmissão colidisse com a velocidade do obturador e a quantidades de frames por segundo da máquina.
O filme levou sensivelmente uns três a quatro dias a realizar desde as primeiras filmagens até à entrega, já que a data para a apresentação do filme em Lisboa e no Porto era muito curta. Foi quase tudo feito à primeira. Contudo houve uma boa preparação (mesmo que não escrita em papel) do que se pretendia fazer.

2 - Já conhecias o Manuel Gomes Teixeira? Como se deu o contacto? O que pensa ele do filme?
:: Como disse atrás, o Manuel Gomes Teixeira é um amigo de longa data, alguém com grandes conhecimentos na área da fotografia e é uma pessoa com quem eu já aprendi imenso. Para o Manuel (e para mim também) o filme poderia ter um ou outro detalhe melhorado, mas como ambos considerámos que respondia bem ao que era o objetivo considerámos deixar assim, já que não havia tempo para grandes alterações.

3 - Existe aqui uma clara mescla conceptual entre o objeto tratado, a fotografia, e o media escolhido para o tratar, o filme. Como vês essa relação, no sentido, em que a fotografia apresentada, só pode ser aquilo que o filme consegue dar a ver dela?
:: Há uma incapacidade, que se poderia dizer quase que metafísica, de retratar a realidade. Esta é uma discussão presente, cada vez mais, e que é ainda mais presente no cinema documental que, pela sua própria natureza, tenta retratar a realidade. Esta incapacidade advém do acto de que, por mais relatos que tenhamos da realidade, e por mais camadas que se sobreponham dessa realidade, nós nunca a conseguimos captar verdadeiramente por a sua natureza ser sempre mais complexa e mais completa do que as descrições possíveis captadas em cinema. Ora, é nesta aparente dificuldade e nesta "impossibilidade" que reside o enorme espaço de criação do cinema documental, a possibilidade de cada um poder retratar a realidade de forma diferente, quer do ponto de vista do seu conteúdo quer do ponto de vista conceptual.
A filmagem da fotografia cria uma relação de contiguidade entre ambas, uma vez que cria níveis de "teoria da mente". Toda a subjetividade de verdade e mentira presentes numa fotografia aumenta enquanto objeto fílmico, aumentando a complexidade labiríntica do seu significado.

4 - Como se consegue criar uma imagem tão cristalina em vídeo digital, com um contraste preto e branco tão detalhado, diria que se sente uma espécie de quase pureza nesse contraste? É apenas, uma questão de hardware? tratamento por software? ou também daquilo que é captado do real?
:: Eu penso que é um pouco de tudo. Por um lado houve a possibilidade em filmar com lentes de boa qualidade da Canon, todas da série L e, nalguns casos consideradas o state-of-the-art das óticas para fotografia. Por outro lado a Canon 5D Mark II tem sido amplamente reconhecida como um "patamar acima" na qualidade de filmagem em Full HD, quer pela dimensão do seu sensor quer pelos processadores da DIGIC. Por outro lado todos os ficheiros foram primeiramente convertidos para um formato mais "editável" através do MPEG Streamclip, um conversor de formatos de altíssima qualidade, curiosamente freeware. Todo o filme foi editado em 720p e exibido neste formato. Curiosamente a conversão a preto e branco foi através do Adobe Premiere CS 5.5, sem grandes artifícios. Apenas uma conversão direta e uma ligeira correção de luz quando necessário. Por último, os próprios meios de conversão e apresentação da Vimeo também penso que ajudam na qualidade final.

5 - Que tecnologias (hardware e software) utilizaste para criar o filme?
: O filme foi feito com meios muito reduzidos. Foi utilizada uma Canon EOS 5d Mark II, uma lente Canon EF 16-35mm f/2.8L II USM, uma lente Canon EF 70-200mm f/2.8L USM, anéis de extensão para fotografia macro, um tripé Gitzo e um carril para deslocação lateral de construção artesanal. A edição foi feita com o Adobe Premiere CS 5.5 num MacBook Pro. Para a conversão intermédia dos ficheiros foi utilizado um software designado Mpeg Streamclip que converte os ficheiros MOV originais Full HD para ficheiros 720p de menor tamanho (mantendo a qualidade).

6 - Analisando agora à distância, o que terias feito diferente? Nomeadamente no campo do slide rail e da música, mas também outros elementos do filme.
:: Todos os filmes são para mim exercícios de aprendizagem. Mas encerram-se enquanto objetos de dúvida no momento em que são publicados. Neste filme há, de facto, cenas que que o slide rail poderia ter sido utilizado de outro modo e, num plano em concreto, hoje não o incluiria de todo no filme. Mas isto apenas significa que nos próximos projetos isto será pensado de outra forma. Mike Figgis, num livro que li posteriormente, defende um princípio muito interessante. Ele diz que "sempre que estiveres a filmar e sempre que estiveres a movimentar a câmara, pergunta-te porque o fazes. Se não tiveres resposta, então deixa a câmara parada"! E eu penso cada vez mais que isto é uma verdade que me interessa explorar.
A música para mim é fundamental num filme. E quando falo de música refiro-me também aos silêncios, ou aos planos vazios, pretos, sem nada. Cada vez gosto mais que as pessoas parem, que sintam que há momentos em que o filme tem momentos de ausência, pois penso que isto potencía o que vem a seguir, cria cadências, ritmos, etc... A música tem que estar perfeitamente sincronizada com a imagem, não pode ser um mero pano de fundo. Tem que ser mais um personagem do que estamos a ver e, para mim, é fundamental que os tempos da música estejam rigorosamente sincronizados com os tempos dos planos.

7 - Onde é que o filme foi exibido? Como têm sido as reacções?
:: O filme foi exibido em primeiro lugar nas apresentações públicas que o Manuel Gomes Teixeira fez em Lisboa e no Porto a convite do representante da Leica em Portugal. Após essa apresentação o filme foi colocado no Vimeo e neste momento apresenta mais de 64 mil visualizações e mais de 1800 "likes". Curiosamente o Manuel Gomes Teixeira foi contactado inúmeras vezes de países tão díspares como o Uruguai e a Itália para poder fazer workshops de platinotipia.

8 - Porquê lançar a obra em creative-commons?
:: A minha primeira preocupação em colocar o filme em creative-commons prende-se com o respeito pela licença de utilização das músicas envolvidas na realização. A utilização de músicas que se encontram neste domínio de livre utilização pressupõe, em muitos casos, que o produto final deva ficar também no mesmo domínio de utilização. Por outro lado, na realização deste filme, houve claramente a vontade de criar um produto que pudesse ser de livre utilização, para fins didáticos, científicos etc... Como não houve qualquer relação comercial na realização deste filme era um pressuposto que ele iria ficar em creative-commons.


Para fechar esta entrevista, devo dizer que o Luís está neste nomeado para os prémios Sofia, da Academia Portuguesa de Cinema na categoria, Melhor Curta-Metragem Documental, com o belíssimo filme, "A Luz da Terra Antiga" (2012) [trailer].

setembro 24, 2013

Moonbot, publicidade, e comida biológica

A Moonbot Studios, estúdio responsável por obras como "The Fantastic Flying Books of Mr. Morris Lessmore" (2011) e "Numberlys" (2012), traz-nos mais uma belíssima animação 3D. Scarecrow (2013) pretende ser um PSA (public service announcement), mas é aqui suportado por uma grande empresa privada, a Chipotle, o que desencadeou toda uma reação online contra o filme da Moonbot. Embora esta não seja a primeira animação da Chipotle sobre o tema. Para quem anda atento ao universo da animação online, ainda não se deve ter esquecido de "Back to the Start" (2011) com música dos Coldplay, interpretada pelo Willie Nelson.



The Scarecrow apresenta-se como uma animação belíssima, denotando claramente a marca dos criativos da Moonbot, ex-Pixar, tanto na leveza e suavidade dos cenários e personagens, como na forma como conta a história, com muito cuidado e detalhe. Não estando ao nível de Fantastic Flying Books, para anúncio publicitário tem uma qualidade extraordinária. A Moonbot lançou ainda um pequeno making of que vale a pena ver. Mas para não ficar por aqui, o filme utiliza como banda sonora, a música “Pure Imagination”, do filme “Willy Wonka & the Chocolate Factory” (1971), interpretada por Fiona Apple. E ainda... para suportar e fazer durar a ideia foi feito um pequeno jogo para iPad, algo em que a Moonbot se especializou. Sempre que realiza uma curta, lança em conjunto um artefacto interactivo de suporte, ou vice-versa.

The Scarecrow (2013) Moonbot para a Chipotle

No campo do tema, o assunto que aqui é trazido, é novamente o da produção biológica versus produção industrial. O filme mostra o lado negro da industrialização, das condições de produção, do processamento da comida, algo que neste momento já ninguém pode ignorar, e muito mais haveria a explorar sobre tudo isto. Fá-lo de um modo bastante informativo, mas procura atingir sobretudo o lado sentimental da questão, explorando a nossa empatia pela natureza. Ao ponto de alguns críticos acharem que se foi longe demais, e que o filme pode acabar por não conseguir promover o que se pretende, mas antes afastar as pessoas e levá-las a pensar em tornar-se vegetarianas. Por outro lado, outros alertam, que se queremos verdadeiramente mudar as coisas, não é substituindo uma alimentação por outra que vamos lá, precisamos de mudar os nossos comportamentos em termos de alimentação a um nível bem mais profundo que isso.

Outra grande questão que se colocou na rede, logo após o lançamento do filme, foi o facto de que a Chipotle pouco se diferencia das demais marcas que pretende aqui criticar, utilizando a mesma linguagem que estas, apenas subvertendo algumas ideias aqui e ali para assim procurar convencer um nicho específico de público. Ou seja, a sua preocupação não é a natureza, como nos quer fazer crer, mas a faturação. Por isso em poucos dias surgiu na rede um filme, Honest Scarecrow, que realiza uma paródia a The Scarecrow.


Honest Scarecrow (2013) de Funny or Die

Seja como for, a comida processada e alterada geneticamente é uma realidade com que temos de viver nos dias de hoje, e tudo o que pudermos fazer para nos afastar dela, será em nosso proveito. Basta ver a incidência de cancro, com Sobrinho Simões um dos mais respeitados especialistas internacionais na área do cancro, a apontar que nos próximos anos em Portugal, um em cada três portugueses sofrerão de um qualquer tido desta doença! Outro exemplo que lia agora pela manhã, os adoçantes provocam uma perturbação do modo como os nossos corpos reagem ao mundo externo em termos de gratificação. A ilusão do doce, é apenas isso uma ilusão da percepção, mas tal como acontece ao nível de todos as ilusões da percepção, podem acarretar enormes problemas para nós.

Ou seja, quando mudamos algo no universo natural, é sempre impossível prever todas as consequências dessas nossas ações. Na natureza é tudo de tal forma interligado e interdependente, que a mais pequena variação, provoca ondas de transformação onde menos se espera. Por vezes estas ondas são sofríveis, outras vezes são superáveis, mas quase sempre acarretam custos para alguém, que tem de sofrer para dar os primeiros sinais de alerta.